Translated by Elisângela Mendonça
Read the English-language version of this story here.
Em Guarani, eles são chamados mokoi e gwyra. Você pode imaginá-los como dois pequenos pássaros que voam para se juntar a você no momento do seu nascimento e que viajam sobre seus ombros durante toda a sua vida. Eles são os guardiões do seu ayvu, sua força motora, sua alma. Quando você envelhece e seu corpo se desgasta, os pássaros partem de volta à sua morada natural no cosmo. Essa é considerada uma boa morte.
Mas os pássaros podem ser afugentados para longe dos seus ombros, muito antes do seu corpo se deteriorar. Eles podem se assustar com palavras duras, ou por uma visão chocante – como o amor da sua vida nos braços de outra pessoa, por exemplo. Os pássaros podem se acalmar e voltar para você, mas eles podem também nunca mais voltar. E é aí que começam os problemas: os espíritos mais malignos, incluindo o Anguè, que estão à nossa volta e também dentro de nós, podem assumir o controle.
O Angué pode levá-lo a fazer todos os tipos de coisas ruins. Os espíritos malignos podem, inclusive, fazer com que você pegue uma corda, passe sobre um galho de árvore, aperte em torno de seu próprio pescoço, e pule. Jejuvy, em guarani: o termo é traduzido como suicídio em português, mas essa ainda é uma palavra limitada – o real significado é que o Anguè sufocou você, depois de lhe fazer querer morrer. E então todos os espíritos malignos são libertados e, se ninguém agir rápido para detê-los, eles podem se espalhar e causar todo tipo de sofrimento – incluindo jejuvy em muitas outras pessoas.
Quando os enforcamentos começam, pode levar bastante tempo até que eles parem.
Os jejuvy tomaram conta de Sassoró, uma reserva indígena na região Centro-Oeste que abriga 3.800 pessoas, em dezembro de 2015. A primeira morte foi a de Junior Silveira, de 20 anos, que se enforcou em uma grande árvore em seu quintal, entre duas casas. Sua família o encontrou ao entardecer e o cacique, Paulo Fiel, chamou a polícia, mas, como os policiais nunca atendem a um chamado da aldeia rapidamente, Fiel só foi autorizado a retirar o corpo de Junior da árvore no dia seguinte.
"Até lá, todos já tinham visto, inclusive as crianças menores", contou a mãe de Junior, Maria Benites. Há alguns anos atrás, nunca permitiriam que uma criança visse uma vítima de jejuvy. Hoje em dia, dificilmente você consegue impedir que isso aconteça.
Após a morte de Junior, o número de casos cresceu rapidamente – um garoto de 15 anos, uma menina de 14 anos; até que o último jovem falecesse naquele ano: o irmão de Junior, Gilmar, que se estrangulou com um cinto na estrutura do teto do casebre da família, em outubro.
"Os meninos não eram tristes, eles eram normais", disse dona Maria, em uma voz baixinha. "Eles gostavam da escola. Eles jogavam futebol. Eles saíam para os bailes. Eles estavam sempre juntos.
"Algo aconteceu com eles."
Semelhanças com a crise canadense
Existe uma crise de suicídios entre os povos indígenas do Brasil, que tiram a própria vida a uma taxa, em média, 22 vezes maior que a dos não-indígenas brasileiros. Entre a população não-indígena do país, são os homens com mais de 60 anos os mais propensos a se matar (uma estatística que segue o padrão da maioria dos países ocidentais); nas aldeias brasileiras, os casos são quase em sua totalidade entre adolescentes. Mais rapazes se matam do que moças, mas é a taxa de suicídios entre as meninas a que está crescendo mais rapidamente. De maneira geral, a taxa de suicídios indígenas no Brasil é maior do que a nacional em todo o país, mas em alguns locais específicos ela é ainda maior.
A situação no Brasil tem muitos paralelos com o fenômeno do Canadá, porém com uma diferença notável: no Canadá, os suicídios indígenas são chamados de "crise". O primeiro-ministro, Justin Trudeau, afirmou que adotará medidas urgentes contra o suicídio indígena. Seus ministros prometeram uma intervenção em âmbito federal (embora líderes indígenas reclamem que tanto um plano de ação quanto os recursos para implementação ainda são inexistentes).
No Brasil, no entanto, não se fala de crise. Em 2015, o governo federal anunciou um plano de prevenção para o que considera as aldeias mais afetadas (prometendo reduzir o suicídio em 10 per cent), mas não informou o orçamento previsto ou em que locais esse plano está sendo implementado. A resposta tardia e imprecisa reflete, em parte, o fato de que o país, já atolado em uma turbulência econômica e política, tem cortado recursos e desviado o foco da maioria dos problemas sociais. Mas, mesmo nos melhores momentos do Brasil, os 900 mil indígenas que vivem no país sempre foram profundamente negligenciados, os cidadãos mais pobres, menos lembrados, mais marginalizados.
Não mais que uma dúzia de pessoas no Brasil, um país de 210 milhões de habitantes, está pesquisando as possíveis causas das astronômicas taxas de suicídio indígena. Os recursos disponíveis a nível local também são dolorosamente limitados: para os mais de 70 mil indígenas no estado do Mato Grosso do Sul, onde está localizado Sassoró, trabalham 13 psicólogos, nenhum com mais que um diploma de graduação.
É difícil determinar com precisão quando o problema começou, porque os dados são previsivelmente escassos: o governo federal, por meio do departamento de saúde indígena, coleta estatísticas apenas desde meados dos anos 90. Mas os suicídios – cujos casos são tão numerosos e ocorrem há uma ou duas gerações pelo menos – são, de toda a forma, um fenômeno recente. A maioria das pessoas da idade de dona Maria, que tem 52 anos, dizem que isso nunca aconteceu quando eram jovens. O fenômeno chamou a atenção no Brasil pela primeira vez com uma série de suicídios entre o seu povo, os Guarani-Kaiowa, em 1986, quando autoridades brasileiras de saúde indígena notaram um aumento incomum – de cerca de 5 casos por ano para 40. As estatísticas coletadas desde 1996 mostram uma média de 46 suicídios por ano – uma taxa 21 vezes maior que a nacional. Muitas pessoas que desenvolvem trabalho de campo nessa área afirmam que a estatística, provavelmente, é seguramente subestimada, uma vez que as mortes de indígenas quase nunca são submetidas à análise de um legista, ou muitas vezes, simplesmente, não são registradas.
São Gabriel
da Cachoeira
“Hotspots”
de suicídios
Boa Vista
Roraima
Tabatinga
Amazonas
Mato Grosso
Do Sul
Bolívia
Dourados
Amambai
Sassoró
Território
tradicional dos
Guarani-Kaiowá
ARGENTINA
URUGUAI
THE GLOBE AND MAIL, FONTE DE DADOS: CENTRO DE
TRABALHO INDIGENISTA; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
“Hotspots”
de suicídios
Boa Vista
São Gabriel
da Cachoeira
Roraima
Tabatinga
Amazonas
PERU
Mato Grosso
Do Sul
Bolívia
Dourados
Amambai
Sassoró
Território
tradicional dos
Guarani-Kaiowá
ARGENTINA
URUGUAI
THE GLOBE AND MAIL, FONTE DE DADOS: CENTRO DE TRABALHO
INDIGENISTA; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
“Hotspots” de suicídios
Boa Vista
São Gabriel
da Cachoeira
Roraima
Tabatinga
Amazonas
PERU
Mato Grosso
Do Sul
Bolívia
Dourados
Amambai
Sassoró
Território
tradicional dos
Guarani-Kaiowá
ARGENTINA
URUGUAI
THE GLOBE AND MAIL, FONTE DE DADOS:
CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA;INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
Entre as possíveis causas: doença crônica, abuso de álcool
Tendo em vista que a série de suicídios de meninas no norte de Saskatchewan tomou conta do noticiário no Canadá nos últimos meses, fui à Sassoró, e às aldeias espalhadas pelo território Guarani-Kaiowa, para tentar entender o que está acontecendo aqui e como o problema está sendo tratado – caso algo estivesse sendo feito. Conversei com a psicóloga cuja área de atuação incluía a família Benites; com a autoridade sanitária da região; com os rezadores tradicionais e com antropólogos; e com pais e irmãos dos mortos.
Quando perguntei às pessoas por que elas achavam que os jovens Guarani-Kaiowa estavam se matando, elas me contaram histórias sobre a perda de suas terras e rituais que não são mais realizados, sobre o fascínio que a cidade representa, com seus sapatos caros e celulares nas vitrines. Sobre doenças crônicas e o desemprego quase universal. Sobre abuso de álcool e de drogas, e uma geração de filhos cujos pais sentem que não podem mais controlar. (E uma geração de filhos que acham que seus pais não devem mais tentar controlá-los.) Ouvi sobre as características do Kaiowa, que alguns descreveram como um povo fechado, reservado, que não costuma compartilhar suas emoções e que, quando coloca uma ideia na cabeça, vai até às últimas consequências.
E também ouvi sobre mokoi e gwyra, os pássaros de proteção que podem ser espantados para longe. Essa explicação, no final, fazia todo o sentido assim como qualquer uma das outras que ouvi.
O Brasil tem 900 mil indígenas vivendo em 480 "terras demarcadas" que abrangem pouco mais de um milhão de quilômetros quadrados. Dessa forma, apenas 12 per cent do território do país é reservado a eles. (Os "índios", como são conhecidos aqui, não têm direitos de propriedade, nem controle sobre a exploração de minérios ou quaisquer outras riquezas que existam em seu território). Cerca de 400 mil indígenas vivem hoje fora das terras demarcadas, em áreas rurais ou em cidades.
Os povos indígenas da floresta amazônica, retratados na National Geographic com os característicos cortes de cabelo em forma de cuia e cocares de penas amarelas são apenas um arquétipo do indígena brasileiro. E 98 per cent das terras indígenas demarcadas estão na Amazônia. No entanto, a segunda maior população indígena do país está em Mato Grosso do Sul, um estado do Centro-Oeste brasileiro que faz fronteira com Paraguai e Bolívia. Ao todo, são oito as etnias no estado; e a maior delas, de longe, é a dos Guarani-Kaiowa, que somam dois terços da população e cujo território tradicional hoje permeia três países.
No lado brasileiro da fronteira, os Guarani-Kaiowa contam com nove aldeias no sul do Mato Grosso do Sul, estado no coração do lucrativo agronegócio brasileiro. O território, cuja principal vocação é a produção de grãos, é um vasto mar de campos verdes de soja, cana-de-açúcar e milho que pertencem a algumas poucas empresas gigantes, muitas delas multinacionais. Enquanto o resto do Brasil cambaleia sob o peso de uma economia estagnada, ainda se faz muito dinheiro aqui: a fome do mercado asiático pela soja brasileira e pela carne bovina alimentada com soja não diminuiu. Vez ou outra, ao dirigir pelas estradas, as terras de uma fazenda são interrompidas por alguma cidade, construída ao redor de uma praça, com algumas lojinhas de roupas e presentes, uma ou duas padarias e filas de caminhões pesados esperando, no semáforo, para continuar a viagem.
Você pode dirigir durante 15, 20 minutos em linha reta e passar apenas por pastagens de gado Bhraman. Depois de um tempo, você percebe que muito mais terra aqui foi dada às vacas do que aos humanos indígenas.
As reservas não são sinalizadas; você tem que saber exatamente o que está procurando para chegar lá, depois de andar muito tempo por estradas de barro vermelho. Em dado momento, você vê algumas casas atrás de um arbusto cheio de mato – as melhores casas são aquelas com alguns poucos cômodos, mas feitas de alvenaria, com cimento e tijolo; as mais pobres, como a de dona Maria, são apenas um emaranhado de tábuas de madeira. Cada aldeia tem uma escola, onde todas as aulas, exceto as de guarani, são ministradas em português. As escolas sofrem cotidianamente com a falta de professores e com a carência do controle mais básico da qualidade do ensino. Somente 5.400 indígenas no estado estudaram até o primeiro ano do Ensino Médio. Geralmente, há um pequeno posto de saúde em cada aldeia, onde um "agente de saúde indígena" vacina bebês e distribui medicação contra tuberculose durante algumas horas por dia.
Há muitas árvores entre as casas, e uma certa sensação de espaço; há também uma ausência total de qualquer tipo de atividade econômica. Os cargos de professor e de agente de saúde são os únicos que representam alguma atividade remunerada nas reservas. Os únicos empregos disponíveis são os trabalhos nas fazendas, geralmente pagos por dia, durante alguns meses do ano, quando acontece a colheita – mas os agricultores não gostam de contratar "índios". Às vezes, as mulheres conseguem empregos lavando roupas ou limpando as casas dos brancos da cidade, mas esses trabalhos são longe de casa e pagam apenas cerca de R$ 60 por dia.
Os indígenas brasileiros tiveram seu primeiro encontro com os colonizadores europeus em 1500, em todo a faixa litorânea do Atlântico. Por isso, algumas etnias têm mais de 500 anos de experiência lidando com o mundo branco. O colonialismo, no entanto, demorou um pouco mais para chegar ao interior do país. As primeiras concessões de terras para plantação no estado de Mato Grosso foram distribuídas aos colonos brancos no século XIX, porém grandes iniciativas de controle das migrações dos povos indígenas começaram somente em 1915.
Durante décadas, a maioria dos Guarani-Kaiowa conseguiu ficar longe das reservas, morando nas florestas. No entanto, na década de 1970, os últimos resquícios de vegetação nativa foram derrubados para dar lugar às fazendas de gado e às plantações de erva mate. O governo expulsou os Guarani-Kaiowa de suas terras e os assentou em pequenas reservas. O sofrimento pela expulsão foi ainda pior: antes que fossem removidos, os indígenas foram forçados trabalhar como escravos, preparando a terra para as novas fazendas e construindo as estradas que seriam utilizadas para escoar a produção; alguns foram obrigados, inclusive, a continuar por gerações como trabalhadores agrícolas não remunerados.
A remoção foi, em todos os aspectos, catastrófica para os Guarani-Kaiowa. Eles sempre foram um povo semi-nômade, que costumava percorrer grandes distâncias e que, de repente, perceberam-se sem seus meios tradicionais de subsistência. As florestas foram arrasadas, os animais que antes caçavam desapareceram, e as fontes de água foram drenadas em sistemas de irrigação de plantações. As mudanças se tornaram ainda mais terríveis para eles por um motivo adicional: eles foram despejados de locais muito específicos, sagrados, que são essenciais para a prática de seus rituais de plantio, caça, casamentos e tratamento de doenças. O tekoha de uma família, sua terra tradicional e sagrada, é a fonte do teko pora – palavras que significam, essencialmente, estar vivo e bem. Quando eles foram "confinados" – que é a palavra que as pessoas geralmente usam para descrever a remoção – tudo começou a ruir.
'Muita coisa ficou fora de controle'
"As mortes, os homicídios, os suicídios – eles fazem parte da nossa vida agora", foi o que me explicou Izaaque João, que dá palestras sobre a religião Guarani-Kaiowa em um programa da universidade local para professores indígenas. "Quando as pessoas estão psicologicamente e fisicamente bem, está tudo bem, mas quando não estão, os espíritos podem nos atingir, porque não estamos mais protegidos. Existe uma maneira de proteger o grupo, mas o que acontece agora é que os rezadores não estão mais fazendo os rituais para proteger as pessoas – os espaços não são adequados para os rituais. Para realizar cada ritual, você precisa de um lugar específico. É uma coisa sagrada que não pode ser cantada em qualquer lugar."
Estávamos sentados em frente à sua casa de tijolos em uma reserva nos arredores de Dourados, cidade de 215 mil habitantes, a maior da região. Sr. João gesticulou apontando com o queixo para o amontoado de casas ao nosso redor e para a rodovia atrás de nós, que o governo construíra recentemente atravessando o centro da reserva.
"Este não é um lugar sagrado – não é purificado. Você não pode fazer os rituais aqui".
Poucos dias depois de conhecer o Sr. João, fui encontrar uma rezadora. Dirigi quatro horas por aquela mesma rodovia, passando pelas plantações de soja que se estendiam até o horizonte, até a reserva Guarani-Kaiowa no município de Amambai. É uma comunidade relativamente movimentada, alegre, com uma escola em boas condições e quadra de esportes para as crianças. O município de Amambai fica a 20 minutos de distância da aldeia pela rodovia – por isso, algumas pessoas vão até lá para trabalhar. Mas os aspectos mais sombrios da vida aqui também se tornam visíveis: no meio do dia, você pode se deparar com mulheres tão drogadas ou alcoolizadas que mal podem andar, levando um monte de crianças esfarrapadas e imundas pela estrada. Amambai tem chamado a atenção nos últimos anos por ser o município com a maior taxa de suicídios indígenas do Brasil, um título macabro perdido ano passado para Sassoró.
Cedo pela manhã, encontrei Ilma Gomes, de 58 anos, em casa, cozinhando algo em um caldeirão encardido de fuligem, em um fogareiro a lenha, embaixo de uma tenda. Cabaças secas em forma de cuia, crânios de pequenos animais presos entre as vigas, e misteriosos sacos de couro guardavam coisas penduradas nos pilares de madeira da tenda; ela estava tocando as músicas de rituais Guarani em um pen drive preso a um laptop. Ela usava calças capri e uma camisa de chifon; seus cabelos prateados estavam elegantemente presos em um coque.
Ela repetiu o que o Sr. João havia me dito: poucas pessoas continuam praticando os rituais. Há muitos rituais que um Kaiowa deve fazer todos os dias, como tomar remédios feitos de ervas, para manter o angué afastado. Existe um passo a passo que os pais podem seguir se eles temem que seu filho esteja ameaçado. Existe a folha de uma planta que tem a função de proteção e que deve ser usada para lavar os cabelos. Orações que eles devem fazer para manter a segurança. Mas eles não as fazem.
"Muita coisa ficou fora de controle", ela disse, andando de um lado poro outro – do banco onde sentávamos até a panela fumegante. Ela descreveu como todos os jovens na reserva andam com fones de ouvido, encarando seus celulares. "Tem uma voz falando diretamente dentro das cabeças deles e eles não controlam o que entra nas cabeças deles – isso leva as crianças ao desespero, isso só aumenta a tristeza deles", ela disse, em guarani. "Eles secretamente se apaixonam e, às vezes, começam a beber – sem o controle dos rituais que deveriam estar realizando."
Às vezes, as mães vêm pedir ajuda para seus filhos, contou Ilma. "Quando os pais veem que eles não estão bem, é o momento de agir", disse ela. "Se ninguém perceber, aí, sim, é um problema."
Hoje em dia, normalmente, os pais não estão prestando a atenção.
Altos índices de violência, comunidades afetadas
Poucos dias antes de conhecer dona Ilma, a caminho das terras dos Guarani-Kaiowa, passei pela capital do estado, Campo Grande, e parei no escritório de madeira clara do Distrito de Saúde Especial Indígena do Mato Grosso do Sul. Lá, ouvi alguns dados que explicam as tragédias por trás das famílias tão desestruturadas sobre as quais dona Ilma me contara. Me encontrei com Edemilson Canale, coordenador do departamento, e com Fabiane Vick, psicóloga que lidera a iniciativa de saúde mental.
Canale, especialista em saúde pública, é Terena, uma das etnias da região, enquanto Fabiane é uma mulher branca cuja tese de mestrado é sobre suicídios de Guarani-Kaiowas. Eles me relataram as altas taxas de violência em geral e também violência doméstica nas reservas Guarani-Kaiowa, abuso sexual infantil e agressões; e sobre o abuso de álcool e de drogas, que eles afirmaram ser generalizado, mesmo entre as crianças. Canale disse que sua principal preocupação é a mortalidade infantil – a taxa indígena no estado é mais que o dobro da registrada no Brasil como um todo – e ambos relataram como é difícil tentar abordar questões relacionadas à saúde mental, já que muitas pessoas que eles tentam acompanhar estão desnutridas, vivem em casas decrépitas, ou seja, enfrentam problemas fora do seu escopo de trabalho.
Mas a violência ultrapassa os limites das aldeias e existe, ainda, um conflito externo. Canale me explicou: desde a década de 80, grupos de Guarani-Kaiowa têm tentado recuperar as terras que afirmam ser deles, enfrentando o agronegócio. A violência se intensificou à medida que as fazendas se expandiram. Pelo menos dois caciques foram assassinados nos últimos seis anos, houve tiroteios, sequestros e desaparecimentos, submetendo as comunidades indígenas a frequentes ameaças.
Sr. João também me falou sobre isso: os bandidos raramente respondem pelos crimes contra os índios porque, conta ele, as autoridades e legisladores, estaduais ou federais, estão intimamente ligadas ao agronegócio. A polícia militar e a federal frequentemente se encarregam dos despejos dos Guarani-Kaiowa que tentam ocupar as terras que eles esperam recuperar com acampamentos; os fazendeiros contratam seguranças particulares (fortemente armados), geralmente ex-policiais, de empresas privadas de segurança.
As igrejas evangélicas têm sido uma intensa e constante presença, com uma expansão considerável nas terras indígenas nos últimos 15 anos e, segundo Canale, desencorajam sem pudor seus fiéis a consultarem líderes ou rezadores tradicionais. O resultado foi a ruptura de comunidades e de famílias inteiras. Izaaque João, professor de espiritualidade Guarani-Kaiowa, ponderou sobre isso também.
A juventude Guarani-Kaiowa cresce apenas com acesso a uma educação precária, sem opções de lazer além do consumo de álcool – o que muitas vezes começa antes dos 10 anos de idade – ou da abundante oferta de maconha que vem do Paraguai, ou de crack, revelam os profissionais de saúde; eles praticamente não têm nenhuma perspectiva de carreira, e ainda são expostos a uma realidade paralela, que é a que eles veem na TV e nas cidades. Fabiane contou que em entrevistas com famílias de adolescentes que se mataram, os pais dizem que seus filhos "veem tudo, as TVs, os smartphones, as roupas bonitas. Eles veem e querem tudo, mas vivem em um outro mundo".
Estudos sobre jovens indígenas em outros países apontaram o efeito destrutivo do "aumento da desvantagem relativa". Embora o Brasil enfrente atualmente uma crise econômica, com alto desemprego e inflação, o padrão de vida aqui melhorou substancialmente para a maioria das pessoas nos últimos 15 anos. Os brasileiros mais pobres – com exceção dos povos indígenas – foram os mais beneficiados; ao todo 35 milhões de pessoas saíram da pobreza. Quase nada dessa mudança atingiu as aldeias.
Visitei 10 famílias em reservas no sul do Mato Grosso do Sul que perderam pelo menos um parente por suicídio no ano passado, e as histórias que os pais aflitos me contaram tinham muitos elementos em comum: ele brigou com a namorada. Ele estava com raiva porque eu disse que não poderia ir morar com a menina que ele gostava. Minha filha estava bebendo. Meu filho queria tênis novos, e eu disse que não podia comprá-los. "São coisas banais", avisou-me Paulo Fiel, a liderança indígena de Sassoró. Mas o conflito poderia ser suficiente para assustar os mokoi e gwyra, disse ele, e deixar uma alma vulnerável.
Fabiane, a chefe da equipe de saúde mental, contou que seu levantamento de dados epidemiológicos mostrou que os suicídios acontecem em ciclos, característica cujo motivo eles ainda não conseguiram explicar. O Sr. João, no entanto, disse que faz todo o sentido: sem as cerimônias para controlar os espíritos que se espalham durante o jejuvy e sem os rituais de proteção, os espíritos malignos causam grandes estragos em uma pessoa e depois partem para outra.
Fotografia: dentro do território Guarani-Kaiowa
Suicídios em "hotspots" e poucas explicações claras
A teoria cujas bases são a perda da terra para explicar as mortes por suicídios entre os Guarani-Kaiowa é convincente, e é citada em praticamente toda a pesquisa ou debate público sobre o tema. Mas também levanta sérios questionamentos. Primeiro: por que isso ocorre apenas com os Guarani-Kaiowa? Existem outras sete etnias indígenas no Mato Grosso do Sul, todas com trajetórias de vida muito semelhantes – como as desapropriações de terras, por exemplo. Mas são somente os Guarani-Kaiowa que protagonizam uma crise suicida sem precedentes.
Oitenta por cento dos suicídios indígenas ocorrem em quatro " hotspots" (áreas específicas e concentradas), onde vivem 40 per cent da população indígena brasileira. O primeiro é no Mato Grosso do Sul; os outros três estão na floresta amazônica, entre etnias que têm experiências dramaticamente diferentes dos Guarani-Kaiowa – eles não foram expulsos de suas terras, continuam a praticar a agricultura tradicional, a caçar e a produzir artesanato. Em muitos casos, eles são a etnia dominante em suas cidades. Duas dessas comunidades amazônicas compartilham algumas características: estão em áreas remotas próximas às fronteiras com a Colômbia e com o Peru – onde o governo federal tem tentado impulsionar a urbanização nos últimos anos e estabelecer a presença brasileira (isto é, não-indígena). Há uma grande instalação militar em cada uma, e uma crescente influência de narcotraficantes. Mas o quarto dos " hotspots " de suicídios está no norte do país, em sua maior cidade, sem nada em comum com as outras áreas.
"A questão da demarcação de terras é uma ótica interessante para se observar os suicídios em Mato Grosso do Sul", disse Dr. Maximiliano Ponte de Souza, psiquiatra da cidade amazônica de Manaus, e um dos principais (e, destaca, sem rodeios, um dos únicos) médicos especialistas em suicídio indígena. "Mas isso não se aplica à Amazônia, onde estão demarcados os maiores territórios indígenas do Brasil".
A maior parte das populações da região compartilha uma característica: a partir da década de 50, crianças de nove ou dez anos eram levadas de suas famílias para viver em uma rede de internatos religiosos administrados por padres salesianos católicos, numa iniciativa entusiasticamente apoiada e subsidiada pelo governo federal. As escolas tinham uma programação rigorosa que unia a educação formal em português (as línguas indígenas eram proibidas) e o trabalho braçal nas fazendas. Não há relatos no Brasil de abuso sexual nesses internatos, mas ainda não houve nenhuma espécie de investigação sobre a experiência dos indígenas nessas instituições. Dr. Ponte de Souza diz que as crianças foram levadas ainda pequenas – porque essa era a melhor maneira de quebrar o ciclo de difusão das crenças religiosas das comunidades – e, de quebra, ainda deixavam de realizar os tradicionais rituais de iniciação da vida adulta. A última dessas escolas foi fechada em 1986.
A perda dos costumes é citada por várias publicações de antropologia, mas essa ainda é explicação não muito clara: cada um dos três " hotspots" da Amazônia abriga vários grupos étnicos, mas, assim como ocorre com os Guarani-Kaiowa, apenas um desses grupos, em cada região, apresenta uma crise de suicídios. Nesse aspecto, o fenômeno brasileiro se parece com o do Canadá: há comunidades indígenas canadenses com epidemias de suicídio, como os Saskatchewan; e Attawapiskat no norte de Ontário, onde mais de 100 pessoas tentaram se matar no ano passado. Mas há também comunidades indígenas canadenses nas quais a taxa de suicídio é menor do que a média nacional. Em uma região específica, diferentes etnias apresentam uma diferença expressiva nas taxas de suicídio – as terras de James Bay e Northern Quebec que estão em disputa, por exemplo, estão localizadas tanto em território Cree quanto Inuit; mas apenas os Inuit têm taxas elevadas de suicídio. O suicídio indígena no Canadá está muitas vezes relacionado à experiência nos internatos religiosos, mas, nas comunidades majoritariamente católicas no entorno desses internatos, em Chesterfield Inlet, Nunavut, as taxas de suicídio são uma das menores reportadas naquele território.
No Mato Grosso do Sul, eu perguntei a todas as pessoas que conheci por que elas achavam que os Guarani-Kaiowa cometiam tantos suicídios, enquanto outras etnias que vivem em terras vizinhas não o fazem. Edemilson Canale, coordenador do departamento de saúde indígena, disse que as reservas Guarani-Kaiowa estão mais próximas das cidades – dando às pessoas um senso do que lhes falta –, mas também localizadas na parte do estado com menor empregabilidade. Os Terena, por exemplo, sempre plantaram e colheram. Já para os Guarani-Kaiowá, que eram tradicionalmente semi-nômades, o "confinamento" se tornou mais difícil de aceitar.
Sua colega, a psicóloga Fabiane Vick, disse que sua equipe relata que os Guarani-Kaiowa são "muito mais introspectivos e reservados do que indígenas de outras etnias…nossos profissionais acham muito difícil lidar – eles não compartilham suas emoções ou sofrimentos. Eles não dividem nada, nem mesmo entre eles."
Essa linha de pensamento, entretanto, incomoda o Dr. Ponte de Souza. "As pessoas buscam respostas na organização sociocultural de cada grupo e em suas diferenças. "Os Terena são mais abertos na incorporação do novo, ao contrário dos Guarani-Kaiowa – esse tipo de coisa. Isso… coloca a culpa pelo suicídio na vítima", disse. "Eu pergunto: 'O suicídio talvez seja uma estratégia social para diminuir o sofrimento?' "Se eu disser 'Sua cultura é a causa', eu esqueço todo o sofrimento pelo qual passa aquela comunidade".
Ele conta que em todas as conversas sobre suicídio que já teve com povos indígenas de todas as etnias, é evidente que eles veem o suicídio como uma "má morte", algo não desejável – por isso, é difícil acreditar que existe uma característica inerente ao povo ou à cultura que faz do suicídio uma escolha aceitável, acrescentou.
Nenhum sinal de alerta – e ninguém tentando ajudar
Em Sassoró, encontrei Maria Benites sentada em uma cadeira de bambu quebrada num espaço entre dois casebres onde ela e seus netos têm dormido. Eles se mudaram para cá depois que Gilmar se matou em outubro – a maioria das famílias escolhe não ficar em uma casa onde um jejuvy acontecera. Ela se levantou e me deu um banquinho bambo para sentar – a melhor peça da mobília para a visita. Todos os bens materiais de dona Maria, dos dois filhos e dos quatro netos que vivem com ela caberiam facilmente em uma caixa de papelão.
Ela disse que não notou nenhum sinal de que qualquer um de seus meninos estivesse pensando em suicídio. Junior, explicou ela, estava com raiva porque ela não queria que ele frequentasse festas à noite com um amigo que ela suspeitava ser usuário de drogas. E quando Gilmar morreu, 10 meses depois – ele sentia falta do irmão, e vivia brigando com sua esposa grávida. Mas ela acredita que alguém pode ter ficado com inveja de seus filhos bonitos e saudáveis, e ter colocado um feitiço sobre eles. Isso, ela pensa, poderia libertar o angué também.
Tudo isso faz com que ela tema pelos netos. "Todos os dias penso que eles podem acabar seguindo o mesmo caminho", desabafa ela. "Eu preciso descobrir quem lançou o feitiço para que eles não possam fazer o mesmo com os outros."
Mas a perda de ambos os filhos, em apenas um ano, deixou dona Maria esgotada até os ossos, economizando seus movimentos e, ainda mais, as palavras. As lembranças dos meninos a arrastam para longe, deixando seu olhar perdido no horizonte por longos períodos de tempo.
Uma coisa que dona Maria não me contou, mas que ouvi mais tarde naquele dia do cacique da aldeia, Paulo Fiel: Junior Benites tentara se matar outras duas vezes. Ninguém na família procurou ajuda na época ou depois. Ninguém veio até eles também.
O Dr. Ponte de Souza me disse que ouviu versões parecidas dessa história nas autópsias psicológicas que ele faz com as famílias de vítimas de suicídio na Amazônia. "Além de contar que os falecidos eram pessoas "normais" e "boas", os membros da família também relatam que o suicida já havia tentado se matar outras vezes", afirmou.
"Em outras sociedades, esta situação seria considerada muito alarmante e totalmente anormal". Mas a frequência aterradora em que os suicídios acontecem serviu para "normalizar" a situação. "E embora as pessoas tenham tentado suicídio várias vezes, elas não buscaram ajuda, nem dos agentes de saúde indígenas, nem de fontes tradicionais".
E apesar das mortes terem sido registradas oficialmente como suicídio, nenhuma rede de assistência chegou até às famílias. Na reserva de Amambai, conheci Claudinéia Rodrigues e Fernando Sarmori, que concordaram em conversar sobre seu filho, Allen. Sentamos juntos no quintal com suas filhas – uma criança de seis anos segurando uma Barbie suja; e uma indiferente adolescente de 16 anos – que se balançavam em uma rede.
Allen tinha 16 anos, estava em seu primeiro ano do Ensino Médio e considerava uma carreira no Exército quando foi encontrado pendurado em uma árvore perto de sua casa há um ano atrás. Claudinéia soluçou e balançou de um lado para o outro, inclinando-se para frente, de modo que seus cabelos escuros caíram para esconder seu rosto, dizendo que ela tinha certeza de que alguém tinha um dedo na morte de seu filho. Ela me disse então que ele estava com o celular dela e que estava usando um camisa nova que ela tinha comprado para ele, no dia que ele morreu – palavras que soaram um tanto quanto defensivas, porque os vizinhos haviam me dito que Allen estava com raiva de seus pais porque eles não podiam comprar um telefone ou roupas novas. "Por que eles tiraram a vida de meu filho?", ela perguntou, e chorou, e o "eles" parecia que incluía todos os que desejassem seu mal, humanos ou não.
Sr. Sarmori, um homem alto e magro, esteve todo o tempo atrás de sua esposa, distraindo-se com a sujeira que varria no chão, e me disse que Allen não fora o primeiro, longe disso: seu pai e sua irmã se enforcaram também. O irmão de Claudinéia também.
E, apesar disso, os pais de Allen revelaram que eu era a primeira pessoa a procurá-los em sua casa para perguntar sobre ele e o que acontecera quando ele morreu. A primeira a perguntar sobre qualquer um dos suicídios naquela família. Nenhum profissional de saúde mental apareceu, ninguém do serviço médico ou da liderança indígena veio, contou Claudinéia. Ouvi isso em cada uma das casas que visitei: Ninguém veio. Ninguém perguntou.
Um encontro chocante
A psicóloga responsável pelo atendimento dessa região é uma mulher branca e dedicada chamada Monay Larissa de Souza, de 29 anos. Durante seis anos, ela trabalhou na comunidade – cuja língua ela não fala – sozinha, mesmo com o número de suicídios de jovens aumentando constantemente. No ano passado, mais dois psicólogos foram adicionados à sua equipe. Agora, eles estão tentando visitar cada casa onde alguém cometeu suicídio, a fim de identificar e tentar dar assistência aos membros da família, ela disse – porque perceberam que, quando há um, geralmente haverá mais.
Em Sassoró, a psicóloga designada para atuar na região é uma das poucas profissionais indígenas no serviço de saúde, uma mulher Guarani-Kaiowa chamada Barbara Rodrigues. (Ela também não fala a língua, porque sua mãe, determinada em dar a ela uma boa educação, colocou-a em uma escola "branca" onde ela só aprendeu português.) Ela assumiu o cargo há um ano e diz que se soubesse o quão difícil era o trabalho, talvez não o tivesse aceitado. Ela ouve diariamente histórias de abuso, mas diz que não tem como intervir; histórias de pessoas na comunidade que vendem álcool para menores, mas não pode fazer nada a respeito. "É um trabalho muito frustrante, não vou negar", disse ela, em uma conversa informal já no fim da noite na varanda de sua casa em Tacuru, município onde está localizada a reserva de Sassoró. "Eu identifico os riscos e aviso às autoridades competentes, e nada acontece. Acabo estando aqui para coletar estatísticas – não há mais nada que eu possa fazer."
Em seu colo, ela segurava uma pasta rosa com purpurina que continha suas anotações sobre cada caso: entrevistas com familiares e amigos dos jovens que se mataram em Sassoró no ano passado. Cada um dos relatórios era uma lista de horrores e miséria – de alcoolismo, violência doméstica, desemprego, fome e de oportunidades que não chegavam. Mas as razões que os membros da família dão para suicídios – "são apenas coisas banais" que deixam ela perplexa. "Se eu pudesse falar: 'essa é a razão para tantos suicídios', ótimo, vamos lá e vamos enfrentá-los. Mas não posso dizer isso."
A preocupação e o incômodo de Barbara eram evidentes, mas não observei esses sentimentos em todos os lugares que fui. Na reserva de Dourados, tive um encontro chocante com o serviço de saúde mental. Dirigi até o escritório da administração e assistência social e conheci a liderança indígena daquela aldeia. Quando lhe disse que estava fazendo uma matéria jornalística sobre suicídio, ele respondeu: "Nós tivemos um ontem! Ou há dois dias atrás." Ele chamou a psicóloga da equipe, Elizeti Moreira, e reproduziu minha explicação sobre o porquê eu estava ali. Elizeti é Terena, a única psicóloga indígena que trabalha naquela região. Ela enfiou a mão no bolso e tirou o celular, empurrando-o na direção dos meus olhos para mostrar uma foto. "Ele veio me ver dois dias antes. Quando ouvi a notícia, corri para lá para ver se era o mesmo cara. E era! Pendurado aqui." Ela riu em aparente espanto e balançou a cabeça. A foto na tela mostrava um homem de short azul que pendia sob uma mangueira, o pescoço bastante torto para a esquerda.
Ela me levou até o seu escritório e leu suas anotações sobre o caso do qual discutíamos, o de Onildo de Oliveira. Era um pai de quatro filhos, desempregado e profundamente perturbado sobre sua incapacidade de encontrar trabalho. Sua ex-esposa havia mandado prendê-lo por falta de pagamento de pensão alimentícia anteriormente, e ele não queria voltar para a cadeia. As crianças pediam comida e ele não tinha nada para lhes dar. Ele se candidatou a algumas vagas de emprego de que ouvira falar, mas quase sempre quem contratava deixava claro que esses empregos não eram para índios.
Elizeti guardou suas anotações e repetiu que não fazia ideia que ele pudesse ser um suicida. Perguntei-lhe o que ela teria feito se suspeitasse que ele poderia estar em risco. Ela me contou que, um ano antes, uma mulher mais ou menos da mesma idade viera vê-la, igualmente desesperada porque não conseguia alimentar sua família. Elizeti tinha conseguido um emprego para ela lavar roupas com um amigo branco na cidade "e então ficou tudo bem com ela." Mas, e com o sr. Oliveira? "Como ele era homem, não tinha nada que eu pudesse fazer."
Perguntei se poderia conhecer a família do Sr. Oliveira, e o líder pediu que Elizeti, bastante relutante, me mostrasse o caminho. À medida que andávamos no meio do mato, entre as árvores, ela apontou para o galho no qual Sr. Oliveira se matou. Sua mãe, Celestina Vilhalva, de 58 anos, pequena, encurvada, com o rosto ressequido, fazia crochê em um banco do lado de fora da casa de dois cômodos, mas começou a soluçar quando dissemos que viemos perguntar sobre Sr. Oliveira; sua ex-esposa, Mara de Souza, 33, tinha uma expressão atordoada em seu rosto. Elas me contaram que ele era um homem bom, que ia à igreja, e que não bebia. Não havia nenhum sinal do que aconteceria.
Elizeti, a psicóloga, interrompeu a conversa para pontuar que agora poderia ser iniciado um novo ciclo de suicídios.
Mara estremeceu. "Não sei o que isso significa para minha filha", disse ela.
Enquanto falávamos, Lara, de cinco anos, corria de um lado para o outro no quintal, perseguindo gansos na grama alta, parando de tempos em tempos para ver se sua mãe e sua avó ainda choravam.
'Valorizando a vida', identificando riscos
O debate no Canadá sobre as causas dos suicídios indígenas normalmente foca na perda do idioma e da identidade cultural e em como os jovens reagem à falta de oportunidades para o futuro. Existe um sólido consenso que estes são fatores que motivam o fenômeno, embora levantem os mesmos questionamentos que aqui – por que algumas comunidades que apresentam esses problemas têm altas taxas de suicídio e outras não? O povo Inuit tem as maiores taxas de suicídio no Canadá, mas na maioria dos casos, também tem os mais altos índices de suicídios entre todos os povos indígenas, cuja localização geográfica, aspectos linguísticos e cultura são semelhantes.
Algumas das pesquisas mais recentes no Canadá analisam o "trauma inter-geracional" – e como isso impacta os jovens cujos pais e avós foram forçados a se mudarem ou foram abusados em internatos religiosos, por exemplo. Há uma forte indicação de que crianças expostas a "ambientes adversos" – ao alcoolismo e ao uso de drogas, à violência doméstica, ao abuso sexual mesmo que não tenham sido vítimas diretas dessas violências – desenvolverão problemas para controlar seus impulsos e terão dificuldade em entender as consequências de suas ações. Esta é uma descrição que se encaixa em cada um dos casos na pasta rosa com purpurina de Barbara Rodrigues. Mas nenhum dos trabalhadores de saúde mental de Mato Grosso do Sul já tinha ouvido falar dessa pesquisa.
No fim de 2015, com 17 suicídios registrados em Amambai, Fabiane Vick e sua equipe começaram a implementar o novo programa de prevenção de suicídios do governo federal. Essa é a primeira iniciativa organizada pelo serviço de saúde indígena para lidar com a epidemia, apesar de ser, tradicionalmente, a principal causa de morte de índios com menos de 30 anos.
Eles conseguiram carros melhores para que pudessem visitar as aldeias e puderam contratar mais profissionais. "Promovemos atividades para a 'valorização da vida' – para que eles falassem sobre seus planos, sonhos, metas, melhorassem a autoestima – com a ajuda de agentes de saúde indígenas nas comunidades", descreveu Fabiane. Eles realizaram reuniões para pastores, lideranças, entre outros integrantes da comunidade como policiais e bombeiros, que foram convidados para participar – e conversaram sobre a identificação de risco de suicídio e estratégias de prevenção. No ano passado, houve apenas quatro suicídios em Amambai.
Fabiane e sua equipe têm razão de estarem satisfeitas. Entretanto, o governo federal ainda não traçou nenhuma estratégia para pesquisar e avaliar o impacto da intervenção, ou comparar o resultado de Amambai com os das comunidades onde a iniciativa não foi adotada. Dessa forma, a equipe precisa basear seus planos na crença cega de que estão trabalhando no caminho certo. Houve um suicídio em Amambai, em janeiro, de um rapaz de 26 anos e não houve nenhum em fevereiro.
Nesse meio tempo, em que estava em Amambai, descobri que havia uma outra intervenção contra os suicídios em andamento, uma explicação alternativa para a redução das mortes. Ilma Gomes, a rezadora, me contou que no ano passado, depois de ver tantas crianças terem tirado a própria vida, ela e os outros curandeiros tradicionais se reuniram e decidiram que precisavam agir. Claramente estas crianças necessitavam das forças que protegiam o mokoi e o gwyra, para que os pássaros pudessem continuar sendo seus guardiões contra espíritos malignos.
Assim, os curandeiros começaram a executar os rituais de proteção, todos juntos, de uma só vez, todos os dias – nas escolas e em todos os lugares onde os jovens se reuniam.
"Fizemos isso por três meses. E então as mortes cessaram."
Stephanie Nolen é correspondente da The Globe and Mail na América Latina.
Com pesquisa de Elisângela Mendonça